APRESENTAÇÃO DO LIVRO
“MUTANTES DAS COMÉDIAS DO MINHO – Territórios, Artes e Aprendizagens”
19.7.2023
Boa tarde, obrigada Magda, obrigada Comédias pelo convite para estar aqui hoje a apresentar este livro, este livro co-editado com a Associação A3S, obrigada. É na verdade uma honra porque as Comédias são um projeto que admiro, desde que em 2016 tive a oportunidade de voar do Rio de Janeiro diretamente para Paredes de Coura, onde fiquei por 4 meses a fazer uma criação. Tive a sorte de conhecer um pouco de perto o trabalho que desenvolvem e como desenvolvem. Sempre que tenho a oportunidade de contar um pouco sobre a minha experiência nas comédias, a experiência de 2016 e a experiências com o projeto MUTANTES nestes últimos 2 anos, há sempre uma surpresa. Um UAU, da parte de quem escuta pela primeira vez a forma como as Comédias se organizam, como o projeto se iniciou e como se mantém até hoje. É a partir da experiência como artista, como artista que participou nas férias mutantes, que li este livro e que estou hoje aqui a falar um pouco sobre ele. Territórios, Artes e Aprendizagens – o projeto Mutantes é inevitavelmente um acontecimento nesses três campos. Um acontecimento em vários territórios do Minho, como é sabido, mas refiro-me a território não apenas na combinação dos 10 municípios onde as atividades foram acontecendo, mas também na combinação de territórios que se encontraram em cada sala, em cada sala de oficinas e atividades. Da minha experiência como orientadora de duas oficinas conto-vos que a combinação de territórios na sala são um breve exemplo das características destes territórios, desde jovens que moravam a 5min a pé da escola onde a atividade estava a ser desenvolvida, como jovens que vinham das suas casas na aldeia através de táxis ou carrinhas, porque se não fossem esses transportes extraordinários não teriam como chegar ali – às férias mutantes – ou cerca de 12 jovens que chegavam todas juntas porque vinham da mesma casa – uma casa da Santa Casa. Estes exemplos mostram brevemente a diversidade de acessos às oficinas mutantes, e podem sinalizar algumas características destes territórios. Falar de território é para mim sobretudo falar das pessoas que o habitam, como transitam, como o ocupam, como o contornam, que paisagem constroem e que horizonte vêm a partir dos lugares que habitam. E é a partir daí, dos horizontes de cada território, que talvez se chegue às artes, não só, mas também. Pelo menos quando se intitula este projeto de Mutantes, quando se é guiado ou sugerido por esta palavra, MUTANTES, então sim, pode-se chegar às artes a partir do horizonte e do território de cada pessoa que manifesta este projeto para si. E citando o texto da Teresa Fradique, que propõe um glossário mutante, na página 39 e que cita Ailton Krenak, diz: “quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar. (…) Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir.” É isto, ampliar horizontes através das artes – cantando, dançando e fazendo magia.
Sabemos que as Comédias têm uma missão no campo das artes, que são uma rede cultural com três eixos estratégicos: uma companhia de teatro, um projeto pedagógico e um projeto comunitário. Neste projeto Mutantes – projeto pedagógico mas que consequentemente se prevê comunitário, e que cria um laço com a sua raiz artística – o teatro – mas como não poderia ser diferente – como pensar o teatro sem pensar em corpo, movimento, dança, música, espaço, objetos, paisagem,… E sim, Mutantes é também um encontro de artistas nas suas mais diversas linguagens e práticas artísticas, talvez todos com um denominador comum, uma vontade de partilha. E é nesta partilha que chego às aprendizagens – territórios, artes e aprendizagens – Mutantes não é apenas um projeto de formação e inclusão de jovens, é, passo a citar da página 13 um excerto do editorial escrito por Luísa Veloso, Magda Henriques, Carlota Quintão e Joana Marques:
“Tendo como foco prioritário a inclusão de jovens, em particular jovens em risco de exclusão social ou socialmente desfavorecidos, o projeto Mutantes contemplou a realização de oficinas dirigidas a adolescentes durante o período letivo – Oficinas de Continuidade – oficinas também dirigidas a jovens que decorreram em períodos de interrupção letiva – oficinas sazonais e oficinas a agentes educativos e outras pessoas interessadas – oficinas de capacitação.”
A estratégia de aprendizagem que aqui é referida atravessa o calendário do ensino escolar, mas para mim tem um marco significativo que até parece evidente, possivelmente para muitas de nós que aqui estamos hoje, mas sabemos que nem sempre é assim, que são as oficinas de capacitação para agentes educativos e pessoas interessadas. Pois voltando à pergunta que tem sido tão urgente: quem cuida de quem cuida? Como ampliar horizontes, multiplicar ferramentas, trabalhar a longo prazo de forma estrutural e estruturante? Um projeto que dá a oportunidade aos agentes locais, aos que irão possivelmente continuar com estes jovens, que irão encontrar ainda mais e outros jovens, que precisam de ser inspirados porque as suas demandas laborais diárias nem sempre são fáceis, possivelmente estão cansados, ou des-inspirados, que possivelmente não têm também assim tantas oportunidades para se ressignificarem, atualizarem, re-aprenderem. Este foco na aprendizagem que é amplamente significativo no que se refere a quem são os aprendizes de facto, diz muito sobre como este projeto de 2 anos aconteceu, como foi pensado, implementado e também analisado. Estas aprendizagens, que atravessam territórios, artes, jovens e agentes – chegam a nós, artistas. Isto vai parecer mais um daqueles clichês da sabedoria fácil – todos aprendemos se estivermos disponíveis – sim, é verdade, mas nem sempre se criam contextos para que essa aprendizagem seja partilhada, mensurada e de facto adquirida. Quando refiro que nós artistas aprendemos, refiro-me à possibilidade real de trabalharmos em territórios que normalmente estes artistas não frequentam, quantos de nós artistas vamos a cidades do interior de Portugal dar oficinas? Durante uma semana o dia inteiro? Se olharmos para este leque de artistas variados que foram sendo convidados ao longo destes anos, conseguimos perceber a diversidade nas suas linguagens, a diversidade do lugar de onde vêm e de onde trabalham regularmente, e é para nós – e não posso falar em plural, falo por mim – é para mim uma oportunidade de aprendizagem, porque é um desafio, sair de uma capital onde também já trabalhei com jovens e com jovens em situações desfavorecidas e ir sozinha com a minha história encontrar-me com um grupo de jovens, passarmos uma semana juntos a partilhar coisas artísticas. E digo coisas, porque eu não sei bem se o que fiz durante uma semana com estes grupos de jovens é teatro, é movimento, é voz, é expressão dramática, é exercícios de espaço e concentração, são jogos de imaginação e criatividade, eu não sei bem se esses exercícios todos que fui fazendo se chamam teatro, ou arte, para mim sim, sempre, mas adorava que uma pessoa completamente desinformada da situação e destas nomenclaturas, entrasse numa dessas sessões e assistisse a um dia de uma destas oficinas… não sei se no imediato chamaria aquelas coisas de teatro, e duvido que de imediato dissesse que quem estava a aprender eram eles, os jovens… porque, por mais que sejamos nós os artistas que muitas vezes damos o mote, as regras do jogo, os desafiamos, baralhamos, organizamos, chateamos porque um ou outro quer levar todos para a bagunça, enfim, … também a maior parte das vezes tudo isso: o mote, as regras do jogo, o desafio, a baralhação, a organização, as ideias, as propostas, acontecem por eles. Talvez a grande aprendizagem seja escutar, mais uma vez este verbo volta com essa urgência, chegar a estas oficinas com essa disponibilidade: escutar, e se chegamos com propostas e disponibilidade de escuta, saímos transformados – mutantes. Na página 77, a Alice Silva, o Luís Carlos Silva, o Pedro Morgado e a Tânia Almeida – equipa das Comédias do Minho, dizem: “A escuta ativa é fundamental.” Aprendendo com eles, eles que estão nestes territórios, com as suas artes de escuta e aprendizagem contínua – uma escuta ativa.
E esta ideia de escuta leva-me de volta a este livro, como ele foi organizado e que remata novamente o seu título: territórios, artes e aprendizagem. Um livro que é um reflexo de todos os agentes envolvidos: a equipa das comédias, a equipa do Mutantes, pessoas que pensam o projeto na sua significação cultural, pedagógica, comunitária, em rede, as pessoas que são agentes políticos locais, as pessoas artistas que orientam atividades e as vozes das que participaram. O livro vai sendo atravessado e composto por discursos que produzem pensamento e conhecimento sobre estas atividades, discursos e conversas que ampliam o projeto para pensar futuros, para pensar estratégias e modos de fazer, discursos de diferentes vozes com diferentes pontos de vista que inevitavelmente ampliam as atividades que foram realizadas, que torna ainda mais estruturante este projeto, que o distancia de apenas um conjunto de oficinas, para se consolidar num projeto-eixo-motor-piloto-desafiador-utópico-possível. Este livro é desenhado e editado de forma a englobar tantas visões, e tão profundas, que a mim me emociona o facto de numa mesma edição ler o breve depoimento de um jovem mutante – que participou em alguma das atividades, uma conversa com uma vereadora da cultura, um depoimento de um presidente da câmara e outro de ume artiste. Maria Vlachou logo no início do livro, pergunta, na p.28:
“Quem queremos ser em 2030? e em 2050?”
Estas perguntas fizeram-me lembrar um dos exercícios que fiz com estes jovens, que foi, escreverem uma carta para si mesmos para lerem quando tiverem 50 anos. Não as lemos, são cartas para eles guardarem, esquecerem essa carta no meio dos seus pertences e um dia no futuro encontrá-la e lê-la. É um exercício simples de imaginação, mas que normalmente jovens adolescentes ficam desorientados porque pensam que falta muito tempo, dizem, sei lá o que eu vou estar a fazer daqui a 35 anos, não consigo imaginar esse futuro. Mas quando começam a escrever, emocionam-se e sobretudo imaginam futuro, um futuro que não é só amanhã e depois de amanhã ou o final do ano lectivo, permitem-se imaginar mais longe, mas de forma real, porque é uma carta para eles, serão as suas próprias histórias, escrevem para alguém que irão conhecer cada vez melhor, é também uma responsabilidade, um pacto de promessa de que irão ler e com certeza quererão ler aquilo que escrevem hoje com 35 anos de antecedência.
A Magda Henriques na página 89, no seu texto que se desafia a responder a perguntas que nem sempre são fáceis de se fazerem quanto mais de se responderem, faz a pergunta: “Para que serve um livro?” E responde na voz de Antonio Tabucchi “– nesta época em que tudo tem de ser útil, um livro talvez seja um objeto inútil, mas absolutamente imprescindível.” Então deixo este desafio aqui, vamos imaginar que o mais imprescindível deste livro é ser uma carta para o nosso futuro, tal como a carta que estes jovens se desafiaram a escrever para os seus futuros, este livro ser o que precisamos ler agora e o que desejamos ler em 2030 e em 2050. Imaginem que em 2030 este livro conta uma história de um projeto que parecia único, que parecia pouco, que merecia mais, mais continuidade, e que aos olhos de 2030 iremos pensar, fogo ainda estávamos tão longe. Imaginem que aos olhos de 2050 este livro vai significar um dos símbolos das lutas políticas que as comédias, os mutantes e tantas de nós fazemos diariamente para que a arte chegue a muitos, para que seja a base da educação, para que una territórios, para que construa redes de diálogos e trocas, para que a democracia não seja nunca mais posta em causa. Porque citando mais uma vez a Magda, “temos o optimismo como dever ético” e mais ainda, este livro é uma carta que queremos ler no futuro para relembrar o que mudámos, o que conseguimos fazer, mas também um mapa, um guia para não esquecer, pois citando a Magda ainda, “não importa só fazer, importa como se faz”. E para finalizar, porque o como se faz depende muito de quem o faz, será sempre necessário dizer os nomes da Mariana Abrantes e da Liliana Claro, que escrevem também aqui, que podemos ler as suas experiências que também foram mudanças de vida. Quero também dizer o nome do Paulo Pinto, fotógrafo que acompanhou todas as atividades e que tem as suas fotografias impressas aqui, ficaram lindas. A fotografia a cumprir uma das suas funções, a ativação da memória.
E preciso mesmo de dizer isto, os jantares com os artistas a meio das oficinas, não está referido no livro, mas é de um cuidado inacreditável, a meio da semana das atividades em que 10 artistas estão espalhados em 10 municípios diferentes, reúnem-se num jantar e, além de nos conhecermos, trocamos a experiência do nosso grupo e como tudo está acontecer. É o tal cuidado. Também o cuidado que as Comédias têm em aparecer sempre em todas as atividades, e no meu caso pelo menos, eles vão e estão lá, só estar é tanto e tão difícil. E o acompanhamento da A3S, porque se este livro é imprescindível, é também pelo estudo de acompanhamento realizado por esta associação. Estudar, escutar, escrever, medir, comparar, criar informação e conhecimento que se partilha, que se torna dados, que se torna facto para diálogo, propostas, novas negociações. Porque já sabemos que não chega fazer, para que em 2050 as lutas já sejam outras, então hoje não chega fazer, temos de documentar, temos de analisar, temos de produzir reflexão para que aconteça uma revolução. Obrigada.
Raquel André