EDITORIAL 2021
“Quando o mundo é um lugar hostil, a ternura é um acto político.”
Miguel Bonneville
No ano de 2021 terminamos o ciclo 2018-21, orientados por uma ideia de Justiça, olhada a partir de diferentes lugares e através de imagens variadas.
É um ano marcado por uma pandemia que nos deixou, ainda em 2020, “para lá do espanto” 1 e ampliou, tornando mais evidente, o que frequentemente tentamos não ver: a imprevisibilidade da vida. Acentuou desigualdades e fragilidades tornando, na nossa perspetiva, mais urgente a necessidade de nos implicarmos e cuidarmos uns dos outros – daqueles a quem estamos diretamente ligados, mas também daqueles com quem possamos não ter um laço próximo, mas que fazem, connosco, parte de uma mesma comunidade: a comunidade humana. Talvez convenha lembrar que a comunidade humana não existe sozinha. Estamos todos ligados, “seres humanos e não humanos, em relações de reciprocidade com a paisagem de múltiplas vozes” 2, e importa exercitarmos uma escuta atenta, com o corpo todo, e ativarmos os sentidos.
Tomamos como orientação deste ano as palavras: cuidar, respirar, mas também faróis e imaginação.
Ou isto ou aquilo
Ou isto ou aquilo
Isto e aquilo
Adília Lopes, in Estar em casa
O ano de 2021 torna mais explícito que há bens, que tomamos por garantidos, que precisam do nosso empenho quotidiano para que não se percam. O movimento da História faz-se no sentido do cavalo no tabuleiro de xadrez e não no sentido de umas escadas que se sobem, degrau a degrau. 3
Em momentos especialmente difíceis, em que as necessidades aumentam e os meios escasseiam, convém recordarmos que: “O hospital e a biblioteca são ambos necessários em proporções justas” e “A cultura é cara? Experimentem a ignorância!”. 4
A propósito disto e daquilo, de economia e cultura, o economista José Reis, no seu livro Cuidar de Portugal, lembra-nos que “a economia precisa de ter as pessoas no centro e não a competitividade ou os mercados, que aliás não existem sem as pessoas.”
O escritor francês Victor Hugo, na assembleia constituinte de 1848, afirmou – “Não é cortando nos fundos à cultura que se vence a crise, mas sim redobrando-os”, porque é em momentos de crise que as atividades culturais e a educação precisam de ser reforçadas, tais são os perigos da ignorância.
Ninguém se salva sozinho e não estamos todos no mesmo barco
Num ano particularmente marcado por dificuldades profundas, precisamos de exercitar a serenidade, o pensamento, a imaginação para que possamos preparar-nos, prevenir-nos, para cuidarmos melhor.
Parece ter-se tornado ainda mais urgente cuidar.
Cuidarmos uns dos outros.
Cuidarmos das palavras porque elas constroem realidades. Podem salvar, mas também matar.
O cuidar como gesto transformador da vida, ao serviço do bem comum, de uma sociedade mais justa, porque o desenvolvimento de uma comunidade avalia-se pelo cuidado dedicado àqueles que se encontram numa situação mais frágil.
Escutar. Prestar atenção. Trazer para dentro. Ter um relógio sem ponteiros.
Tomamos a indefinição, a imprevisibilidade. Escolhemos não ficar a lamentarmo-nos por um outro tempo. Mantemos a esperança ativa, procuramos boas notícias e não adiamos o presente à espera de um mundo que há de vir. O futuro faz-se das nossas escolhas, agora.
Orienta-nos a pergunta: com o que temos, o que podemos fazer?
Tentamos. Às vezes conseguimos. Não deixamos de tentar.
Dizemos sim à vida. E dizer sim à vida é também não nos esquecermos de viver. E viver exige que, perante pelo menos algumas situações, sejamos, como Bartleby, capazes de dizer: “prefiro não o fazer”.
Em momentos como este talvez precisemos, mais ainda, de ser capazes de respirar.
Enfrentamos o medo de estar connosco e tentamos “aprender a viver com o monstro que aluga um apartamento na nossa cabeça” 5. Não é um convívio fácil. É um exercício permanente, este de não alimentar o nosso inquilino.
Respirar para não nos perdermos de nós e dos valores que defendemos. Respirar fundo e fortalecer a ligação aos nossos faróis (aqueles que nos ajudam a situar e a não nos despedaçarmos contra os obstáculos), para que não nos percamos no meio da cacofonia e das respostas fáceis e rápidas que não têm em conta a complexidade da vida. Alguns desses faróis estão ao nosso lado. Outros, encontramo-los entre artistas, cientistas, pensadores. Grande parte destes não conhecemos pessoalmente. Uns vivos, outros viveram há muito, mas damos por nós a defendê-los como se de amigos próximos se tratassem. Porque nos ajudam a encontrar sentidos para o que vivemos, a fortalecer o entusiasmo e a esperança e a estarmos menos sós no que pensamos e sentimos. Com eles vivemos outras vidas e mundos e prestamos atenção ao que antes não tínhamos reparado. A eles vamos buscar instrumentos para continuarmos a pensar para que outros não o façam por nós.
Continuamos a perguntar o que é uma vida boa.
A arte, como outras formas de conhecimento, é uma ferramenta valiosa nessa procura permanente. Mantém as perguntas ativas e dificulta as certezas. Ajuda a exercitar aproximações à complexidade da realidade, a conhecer e a conhecermo-nos. A percebermos que a procura da verdade é um caminho sem fim e que devemos fugir daqueles que se apresentam como detentores dela.
Sabemos que a arte não nos “salva”. Se a arte salvasse, há muito que a humanidade se teria salvado. Mas sabemos do seu potencial e por isso continuamos a nossa missão de democratização do acesso e participação das pessoas na arte, para que cada uma possa escolher.
“A imaginação é a voz da ousadia. Se há algo de divino em Deus é isso. Ele ousou imaginar tudo.”
Henry Miller, no espetáculo Rosa Crucificação, de Mónica Calle.
Tomamos a imaginação como ferramenta essencial para viver.
Einstein terá dito que “A imaginação é mais importante que o conhecimento” e ainda “Não tenho talentos especiais. Sou apenas apaixonadamente curioso”. Reclamamos, à semelhança de uma criança, uma imaginação indomesticada. Convocamos a louca da casa e com ela a liberdade. 6
Desinventamos.
Andamos com os pés no céu.
Abrimos a janela do quarto, fechamos os olhos e ouvimos o concerto lá fora.
O mosquito é um animal mal sintonizado.7
Construímos um diário só com coisas boas. Não desistimos de encontrá-las. Se for preciso, usamos uma lupa.
Olhamos. Olhamos através da lupa e distraímo-nos do resto.
Vemos o prédio, mas não deixamos que ele nos impeça de ver o sol. 8
Frei Bento recorda-nos que “Resta um desafio para a nossa imaginação: como reinventar e multiplicar as manifestações de afeto e de bom humor que anulem o mau distanciamento e a indiferença”.
Ligar as palavras à ação: algumas pistas sobre como colocamos em prática o que pensamos, sentimos e imaginamos
Num ano tomado pela imprevisibilidade, as datas que apresentamos neste programa são apenas indicativas. Convidamos cada pessoa a construir esta agenda, confirmando datas, horários e locais das atividades nas nossas redes sociais, bem como nas dos nossos municípios associados.
A imaginação é uma ferramenta valiosa para combater a monotonia e a indiferença. É um detonador do espanto. Assim, apresentamos algumas propostas, concebidas pela equipa das Comédias do Minho e por alguns dos nossos convidados do ano, para exercitar a imaginação e desinventar o quotidiano.
Porque desejamos muito contribuir, estamos a respirar fundo para, com ternura e cuidado, imaginarmos possibilidades de nos mantermos ligados às pessoas. Perante a impossibilidade de apresentar presencialmente alguns espetáculos, ou outras atividades, estamos a criar propostas artísticas diversas – outros faróis – que possam chegar.
Não desistimos de procurar e construir meios para continuarmos ligados uns aos outros. Os mais velhos – aqueles que abriram o caminho para as gerações seguintes; aqueles que somos ou seremos, se tudo correr bem – são motivo de uma particular atenção e estamos ainda à procura das melhores formas para que o encontro, em segurança, possa acontecer.
Um passo de cada vez.
Começamos 2021, com a estreia da nossa Companhia, com o espetáculo [Estávamos] Para lá do tempo, em circulação pelo nosso território. Esta produção, que começou por ter como título Numa Didascália, devia ter estreado no final de 2020, mas a pandemia obrigou à alteração dos planos. Com criação de Tânia Guerreiro, a partir dos livros e do imaginário de Álvaro Laborinho Lúcio, somos guiados pela memória, por uma imensidão de possibilidades e partimos em busca da verdade.
Simultaneamente, com apresentações no nosso território, o espetáculo Fibra, projeto vencedor da Bolsa Isabel Alves Costa, uma parceria entre as Comédias do Minho, o Teatro Municipal do Porto e o Festival de Marionetas do Porto. Uma criação de Lola Sousa e Filipe Moreira, que parte do figurino como protagonista e nos convida a uma viagem através da “epiderme roupa-corpo”, em permanente metamorfose.
Com os mais novos, continuamos a mergulhar Dentro do Coração, um espetáculo de Márcia Lança, para saber de que é feito e o que traz dentro. A Márcia pediu ajuda à ciência e à arte para perceber melhor o coração. Porque a complexidade da realidade exige conhecimentos variados.
Leonor Keil explora, com turmas do 2º ciclo, os sentidos e a responsabilidade das nossas escolhas. Em Tribunal dos Sentidos, lembra-nos que importa não só viver, mas saber viver e que todos nós trazemos instrumentos para o poder fazer.
Em Estranhões e Bizarrocos, de Joana Providência, espetáculo para o 1º ciclo e famílias, a imaginação toma conta de nós e uma coisa transforma-se noutra e mergulhamos num tempo sem tempo, naquele em que se abraça a felicidade.
Em Maio, o FITAVALE! Em 2020 devíamos ter celebrado os 10 anos. Não foi possível estarmos presencialmente, mas transformámos essa comemoração, à distância, num programa de teatro radiofónico, com os nossos amadores, a partir de um clássico da rádio comercial – Pão com Manteiga. Este ano, algumas surpresas estão em cogitação e a desenhar-se em função da situação pandémica.
A companhia de teatro Formiga Atómica estará em residência no Minho a trabalhar na produção do espetáculo O Estado do Mundo para o Projeto Pedagógico, com circulação pelo nosso território em 2022.
Em Julho, chega o verão e com ele voltamos a ter connosco cinco artistas para, nas oficinas Atlas, trabalharem com os adolescentes.
Entre Junho e Julho, sobe ao palco A perturbação do cidadão exemplar, de Joana Magalhães, com texto original de Gonçalo M. Tavares. “Tomando como inspiração uma das estórias mais célebres de Herman Melville, Bartleby, este espetáculo coloca em arena de combate o conceito de trabalho, tal como hoje o conhecemos.” Esta é uma estória que se conta acompanhada pelo ritmo frenético de uma bateria.
Em setembro, há filmes no largo! Circulamos pelas freguesias e vemos juntos, ao ar livre, o filme de Eva Ângelo – Num dia de vento, atira-se ao ar. Este filme foi realizado paralelamente ao espetáculo Sementes, de 2019, uma coprodução das Comédias do Minho e da Associação Amarelo Silvestre.
No final do ano, Elipse, de André Martins, cruza o teatro com o cinema. Mergulhamos num tempo “onde o espanto não é um lugar de passagem” e visitamos uma comunidade que olha para o cinema como uma forma sagrada. Estão também presentes o território, a história das Comédias e algumas das pessoas que delas fazem parte.
Damos ainda continuidade e fortalecemos a relação com a Rede de Colaboradores Locais, embaixadores essenciais do nosso trabalho, muito especialmente com uma oficina de Ana Pêgo. Temos também formações e oficinas variadas e ações paralelas aos espetáculos. E ainda os Encontros Excêntricos: da Arte e da Educação, que este ano contam com os convidados: Sara Barriga Brighenti, Miguel Fragata, Inês Barahona e Ana Pêgo.
Há mais uma Rádio, um Museu, uma publicação de Afonso Cruz, três curtas e um filme de André Martins que fazem parte da área de ação – Produção de conhecimento: linguagens poéticas e científicas – onde podemos aceder a múltiplas vozes, à articulação de diferentes formas de conhecimento e à valorização da memória.
Outros projetos
Dentro do Programa Schooll4All, temos um espetáculo e oficinas para alunos e professores, da Propositário Azul, a partir Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões. Acolhemos também em residência artística a companhia Casa Conveniente, de Mónica Calle.
Algumas surpresas estão ainda a imaginar-se.
Imagine, desinvente connosco!
Magda Henriques
1 José Reis, in Cuidar de Portugal
2 David Abram, in A Magia do Sensível
3 A partir de Claude Lévi-Strauss, in Raça e História
4 António Pinto Ribeiro, in jornal Público
5 A partir de Afonso Cruz, in Os livros que devoraram o meu pai
6 A partir de Rosa Montero, in A louca da casa
7 Gonçalo M. Tavares, in O dicionário do menino Andersen
8 A partir de Gonçalo M. Tavares, in Energia e Ética